Não obstante a grande querela que se faz em relação à apostasia, as Testemunhas de Jeová não conseguem se livrar dessa incômoda “pedra no sapato”.
Não é de hoje que se pede aos membros da religião que se afastem de qualquer um que venha a contestar seus ensinamentos e que ainda esteja com o título de irmão, ou mesmo que já tenha saído de suas fileiras. De fato, não são poucos os argumentos (com raciocínios eminentemente circulares) e textos bíblicos utilizados (a maioria isoladamente, como sempre), para validar essa prática, de evitar qualquer contato com os pensamentos divergentes da Sociedade Torre de Vigia, braço legal do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová.
Durante o tempo em que fui TJ, percebi que a Organização fomenta em seus membros um verdadeiro temor, um pânico doentio em relação às pessoas que saem da seita e que têm a “audácia” de utilizar sua liberdade de pensamento e questionar o que outrora fora entendido como “a verdade”. Não exagero: é um verdadeiro terror mórbido, que faz muito lembrar uma sensação de ataque terrorista iminente, como se vivêssemos na atual Palestina dos homens-bomba e carros recheados de explosivo plástico, prontos a serem detonados bem no nosso rosto, a qualquer momento.
São centenas de artigos falando sobre o assunto. Uma pesquisa breve nos Índices da Torre de Vigia de 1960-1990 e 1991-2005 e no CD-Rom Watchtower Library traz tantas entradas e referências que seria uma tarefa hercúlea enumerar a quantidade de vezes que o Corpo Governante se ocupa do tema, ou pelo menos se refere a ele em seus escritos. Mas uma coisa é certa: em nenhum lugar as Testemunhas são incentivadas ao diálogo aberto e franco sobre suas crenças nem entre si, muito menos com aqueles que não mais concordam com os ensinos cristalizados (ou mesmo fluidos) de sua Organização.
Por exemplo, A Sentinela de 15 de fevereiro de 2004, p. 28, sob o subtópico “As táticas do inimigo”, exorta:
“O inimigo talvez procure dar um golpe por atacar verdades bíblicas fundamentais para a sua fé. Apóstatas podem usar palavras suaves, lisonjas e argumentos deturpados na tentativa de derrotá-lo. Mas o apóstata não está pensando em seu bem-estar. Provérbios 11:9 diz: ‘Pela boca é que o apóstata arruína seu próximo, mas é pelo conhecimento que os justos são socorridos."
É um engano pensar que você precisa ouvir os apóstatas ou ler as publicações deles para refutar seus argumentos. O raciocínio deturpado e venenoso deles pode causar dano espiritual e contaminar a sua fé como uma gangrena que se espalha rapidamente. (2 Timóteo 2:16, 17) Em vez disso, imite o tratamento que Deus dá aos apóstatas. Jó disse a respeito de Jeová: ‘Nenhum apóstata entrará diante dele.’ — Jó 13:16” (grifo meu).
Interessante é a versão enviesada da Tradução do Novo Mundo nos textos de Jó 13:16 e Provérbios 11:9. Nos textos originais, em hebraico, não se usa a palavra “apóstata”, com carga pejorativa de desvio espiritual, mas sim o adjetivo חָנֵף (ka-neph), quase sempre traduzido por “hipócrita” (ARC, KJV, etc.), mas que significa, literalmente, pecador, ímpio, impuro, sempre em sentido moral, nunca espiritual.
por Cleber Tourinho
ex-testemunha-de-jeová, professor, linguista, revisor de textos, orientador em Medotodologia da Pesquisa Cientifica e está mestrando em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia
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